Fernanda Zacharewicz
É sobre humanidade
Por Fernanda Zacharewicz
Psicanalista, doutora em Psicologia Social pela PUC-SP
Celebrar a vida é um acontecimento. Um acontecimento traz em seu âmago algo do inesperado, do surpreendente, mas que também não se dá sem que as condições sejam criadas. Ele é fruto do acaso de um bom encontro e, simultaneamente, produto da responsabilidade individual de saber construir as condições necessárias para isso. O primeiro dia do ano de 2023 foi um acontecimento. Refiro-me à posse do presidente Lula.
Desde 2016 qualquer um que defendesse publicamente uma posição favorável à vida sofreria represálias. Foram centenas de milhares as vítimas fatais dessa política genocida, desde as vítimas da recusa consciente da ciência, não somente durante a pandemia de Covid-19, até as que padeceram sob o jugo de discursos discriminatórios e aqueles de base religiosa excludente. Foram milhões as pessoas que modificaram seu cotidiano para sobreviver aos dias de trevas, em que cada ação construía a possibilidade da celebração desse início de ano. Alguns se exilaram para preservar a vida, outros lutaram por oxigênio, por vacina e medicamento apropriado, pela preservação do meio ambiente, outros cortaram relações com familiares e amigos, crianças hostilizadas tiveram que trocar de escola. Tudo porque decidiram acreditar no direito a uma vida digna para todas as pessoas.
Seria possível fazer uma longuíssima lista de motivos que fizeram com que cada um se deslocasse até a capital de nosso País nessa virada de ano. Mas resumem-se em um só: celebrar a vida.
Brasília esteve lotada de amor. Ninguém estava solitário por aqui nesses dias. Sem palavras sabia-se que aquele desconhecido que caminhava ao seu lado, rumo à praça dos Três Poderes, na manhã do dia 1º, respeitava e valorizava profundamente a sua existência. Desde cedo o sol forte contrariava as previsões de chuva, ressaltava as cores da festa e aquecia os corações e queimava o rosto, braços, pernas e costas das 40 mil pessoas que lá estavam. A água distribuída era pouca e a fila era enorme, os banhos de mangueira oferecidos de tempos em tempos pelos bombeiros traziam um alívio momentâneo.
Logo que cheguei, ainda antes das 10h da manhã, sentei-me atrás de uma enorme bandeira do MST. Fui criança de apartamento, sou amante da cidade cinza e vertical que é São Paulo. Arar a terra, plantar e colher só conheço por teoria e alguma lembrança de infância sobre meu avô cuidando da pequena plantação que mantinha em seu quintal.
Ainda era manhã e eu já sentia meu rosto em brasa, foi quando uma mulher se aproxima, estende uma bandeira do movimento e diz: "Eu estou acostumada com o sol, sou acampada. Você não, cubra-se". Eu olhei para ela, lembrei-me das barracas de lona preta dos acampamentos que vi, só pude aceitar e falar: "Eu agradeço você pela comida que como". Eu recebia, naquele momento, muito mais do que o feijão, o arroz e a salada produzidos pelo MST e comprados no instituto cooperativo da Vila Madalena: eu recebia toda a definição de humanidade.
Algumas horas depois, a gigante bandeira foi levantada na horizontal. Éramos vários que nos revezávamos para manter esticada a cobertura que criou um oásis no qual as crianças dormiam, os adultos descansavam e a pouca água era compartilhada. Sob a mesma bandeira estávamos abrigados médicos do SUS, estudantes de pós-graduação, adolescentes, professoras da educação básica e da universidade, crianças, agricultores e psicanalistas.
Subir a rampa com gente do nosso povo foi legitimar e valorizar a existência de todos, cidadãos e cidadãs, representar exatamente a diferença singular a partir da qual cada um pode contribuir para um País melhor para todos. Nesse momento as grades simbólicas que separavam nós, o povo, que estávamos na praça foram removidas. O que acontecia foi espelhado nessa primeira entrada no Palácio que, a partir desse momento, abrigou a todos nós. Foi com essa disposição de trabalho que cada um atravessou o País e celebrou o início dessa nova era.
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